Zagaias e Tejo
Nesta nova postagem, dois textos de Daniel da Rocha Leite: Zagaias e Tejo, um filete de água entre Belém e Lisboa.
O autor tem quinze livros publicados e recebeu em quatro edições o Prêmio IAP de Literatura. Mora atualmente em Lisboa. Por meio do sonho das histórias, vive a aprender onde o Guamá se encontra com o Tejo. Desconfia que toda a gente não é nem brasileira nem portuguesa, toda a gente é do mar, toda a gente é atlântica. Pensa que assim são as histórias: nascem de um silêncio de um olhod’água de palavras e sendo água viva vão para o rio... vão para o mar. Sabe, enfim, que nessas travessias, todas as palavras têm saudades de Belém.
Zagaias
- Ali, fica a cidade, filho.
Uma cidade que ficava na ponta de umas Torres de Ferro. Guardada por um sol que parecia fogueira no espelho da maré. O céu feito o encerado azul em suas mãos. As cirandas de urubu. Os barcos que trazem esperanças. O primeiro olhar de um menino. Lanças no céu de uma cidade. A cidade que fica na ponta de umas Torres de Ferro. Um mercado marcado ferro morte e vida. O dia nascendo. As lutas de uma vida inteira. O barco a motor que um dia o seu pai teve.
- Menino, cuida. Sai da janela desse barco.
A vida que é um rio correndo as suas águas.
Noé foi marítimo quarenta e cinco anos. Viveu. Morreu várias vezes. Renasceu, sempre, nessas águas barrentas. Conseguiu, enfim, se aposentar. Barqueiro toda a vida. A cidade, para ele, está sempre ali. Nascida das entranhas do mercado. Na ponta daquelas Torres de Ferro.
A cidade.
O seu fascínio e agonia.
Tejo
eu sei das tuas terras em mim
sei dos azulejos escritos na tua pele
sei das tuas mouras passagens e outros silêncios
sei das tuas índias margens
tuas bordas boreais e outras águas
eu sei dos teus olhos lagrimando Áfricas
teus desejos devorados
tuas íntimas diásporas.
Ainda assim
não sei de ti.
Sondam-me os teus barcos adormecidos
tuas águas dormidas nos céus do mundo
sondam-me as tuas insônias
teus verbos de caravelas e naufrágios
teu sangrento silêncio feito palavra tua
distante
aceno de farol
tua língua ágrafa
ostra
oceano
e rio
nos segredos do teu olhar.
Há essa outra cidade
vária que vive sempre no mar
há essa outra terra aquífera
tua
sempre em mim
atlântica incendiária
transatlântica miragem
Lisboa que me tem
que me possui
vida e vertigem
um íntimo estrangeiro.
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