sábado, 14 de novembro de 2015

CIDADE VELHA, Ventre e Margens de Belém

Artigo do professora Agenor Sarraf faz uma significativa abordagem sobre o bairro da Cidade Velha e relação de Belém com a floresta, às vésperas dos 400 anos
Jornal O Liberal, de 15 de novembro de 2015

CIDADE VELHA, Ventre e Margens de Belém

Agenor Sarraf Pacheco
Doutor em História Social (PUC-SP)
Professor Adjunto II da UFPA


         O bairro da Cidade Velha, expressão viva de uma Belém Quatrocentona, é um lugar polissêmico e contraditório. Ventre de nascimento do núcleo urbano também se faz margens espacial e social. Em tentativa poética e política de compor uma leitura da cidade, focalizo esse ambiente que ganhou convencional destaque por ser de "grande importância no processo de conquista e colonização portuguesa no Norte do Brasil" (G1 PA). Ali emergem expressões da vida na Amazônia que parecem traduzir uma perene cidade-floresta.

Disponível em http://www.acaifrooty.com.br/blog/feira-do-acai
-e-referencia-no-mercado-ver-o-peso/. Acesso em 05/11/2015.
             Território de entrada e saída de saberes, tradições e modernidades, o bairro ao constituir-se em zona de intercâmbio com outros ambientes rurais da região, assume uma identidade anfíbia. Muitos moradores de Belém usam diariamente embarcações, ancoradas nos portos da Cidade Velha, para ir ao trabalho, realizar viagens ou passeios fora do núcleo urbano. Nesse trajeto, tecem relações cotidianas em paisagens que congregam asfaltos, águas e florestas. Mas pelas margens de Belém, o açaí rouba a cena. Ele é ícone da identidade amazônica, cuja manifestação simbólica maior é a Feira do Açaí. Por meio de variados tipos e modelos de bandeiras vermelhas, situadas em pontos estratégicos da metrópole paraense, alinhava-se um desenho complexo de uma cidade pintada e integrada pelo hábito indígena de se alimentar.
Disponível em http://amazonia.org.br/2012/05/tombamento-do-centro-hist%C3%B3rico-de-bel%C3%A9m-%C3%A9-homologado-pelo-minist%C3%A9rio-da-cultura/. Acesso em 05/11/2015.
O tombamento do Centro Histórico foi homologado pelo Ministério da Cultura em 10 de maio de 2012. Para esse processo ocorrer, assinala Christine Machado, “levou-se em conta o conjunto formado pela trama da cidade consolidada entre os séculos 17 e 18 – com igrejas e suas torres, largos e praças, coretos, mercados e feiras - em interação com a Baía de Guajará”. Já o dossiê do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) aponta que a área de tombamento aprovada pelo Conselho Consultivo incluiu bens já tombados individualmente pelo IPHAN nas décadas de 1940 a 1970.
Belém erigiu-se com a construção de uma improvisada fortificação militar e uma pequena igreja de taipa, coberta de palha dedicada à Nossa Senhora das Graças, em 1616, marcos simbólicos da dominação portuguesa, num tempo de morte da gerência do território pelos tupinambá e o nascimento do núcleo colonial (1616-1626), mais tarde o Estado do Maranhão e Grão-Pará (1626-1652; 1654-1759) sob a custodia Lusitana. Marcada pela cruz, espada e arco e flecha, o Centro Histórico de Belém guarda diferentes memórias, algumas estão tatuadas no patrimônio arquitetônico, outras se alojam nos subterrâneos de lembranças que as edificações silenciam, mas não conseguem apagá-las totalmente. Muitas pessoas quando visitam esse histórico ambiente urbano, ficam encantados com o poder imponente das construções, mas parecem esquecer as contradições ali existentes.
É importante relembrar que foram populações indígenas, inicialmente, as que erigiram o primeiro monumento colonial, por isso evocar e celebrar uma memória da conquista portuguesa na Amazônia permite visualizar que um processo de tradução cultural orientou o saber colonizador. Na ótica de representações ibéricas e cosmologias ameríndias o patrimônio da Cidade Velha se apresenta, então, erigido sobre memórias oficiais e populares que se cruzam, vivem processos de trocas, experimentam a dominação, a perda e a expropriação, assim como resistem, criam táticas e astúcias para manterem-se vivas. O patrimônio do espaço urbano é plural, assim como plural são os lugares onde ele se manifesta e se ressignifica.

Por esse enredo, o breve passeio pelo Centro Histórico de Belém permitiu rascunhar aspectos de uma cartografia de memórias que explora algumas possibilidades de compreender a cidade por dentro e por fora e na contramão das antigas dualidades: tradição versus modernidade; ruralidade versus urbanidade. Ana Fani Carlos (1995) ao perguntar se “podemos dizer que existem várias cidade dentro da cidade?, eu diria que vejo não apenas vários bairros dentro da cidade, mas várias cidades dentro de um único bairro. Ali se interseccionam a cidade colonial e a cidade da “bela época” tramando-se com a cidade comercial, festiva e de luta pelos direitos de habitação. Concomitante a essas cidades, despontam a cidade da prostituição, da violência, do tráfico de drogas produzidas por dentro e por suas fronteiras.



Disponível em http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1357367. Acesso em 05/11/2015.
      Enfim, nas janelas entreabertas para continuar a olhar e pensar Belém a partir da primeira área onde embrionariamente ela se formou, entre continuidades e mudanças as rugosidades espaciais tomam feituras próprias de seu tempo e dos interesses de seus agentes sociais, a exemplo da Praça Dom Pedro II, cujo espaço no período colonial era o grande Lago do Piri, e, atualmente, é onde está instalado o centro administrativo belenense. Um território de ricos ecossistemas foi sacrificado para o nascimento do Centro Histórico e a emergência de uma metrópole na boca de entrada do grande Amazonas. Um passeio por esse bairro transforma-se em prática politicamente comprometida com lembranças das vozes que não podem mais falar, entretanto, ruídos e reminiscências de suas presenças ausentes, ainda lutam para não serem esquecidas da história.


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